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Processo penal: Professor Airto Chaves Junior produz artigo sobre inviolabilidade de domicílio

25/07/2016

O advogado criminalista e Professor de Direito Penal da Escola do MP, Airto Chaves Junior e a advogada Priscila Portella Coutinho produziram artigo que analisa os direitos de não ser cerceado de sua liberdade e de não ter seu domicílio violado, salvo nas hipóteses constitucionalmente previstas. Confira:

 

A prisão decorrente de mandado e a garantia constitucional da inviolabilidade de domicílio

 

Por Airto Chaves Junior e Priscila Portella Coutinho

 

Propomos analisar aqui dois institutos de ordem processual penal de natureza constitucional que se manifestam na forma de: o primeiro deles é o direito de não ser cerceado de sua liberdade, salvo nas hipóteses constitucionalmente previstas; o segundo, o direito de não ter seu domicílio violado, a exceção, também, das situações previstas no mesmo dispositivo constitucional de que trata desta garantia. 

Pois bem. O motivo da reflexão conjunta desses dois institutos parte da seguinte dúvida: poderia os policiais ingressar em domicílio alheio (sem que estivesse presente qualquer exceção constitucional) para dar cumprimento de mandado de prisão? Ou, de outro modo: o mandado de prisão serve como se mandado de busca e apreensão fosse?

Talvez a melhor maneira de confrontarmos a dogmática das restrições dos direitos e liberdades consagradas constitucionalmente seja fazermos uma aproximação entre ambos os institutos tendentes a permitir um lastro dogmático comum. Então, para chegar à resposta adequada, necessária uma avaliação apartada do direito a locomoção e da garantia à inviolabilidade de domicílio:

O art. 5º, LXI, da CRFB/88, garante o direito de não ser preso, senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competenteA exceção ficaria para os casos de transgressão militar ou de crime propriamente militar, definidos em lei.

O dispositivo em questão recebe complementação do art. 283 do Código de Processo Penal, objeto de reforma promovida pela Lei 12.403/2011: “Art. 283. Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”.

A “ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária” de que tratam a norma constitucional do o Código de Processo Penal recebe o nome de Mandado de Prisão (CPP, art. 285. A autoridade que ordenar a prisão fará expedir o respectivo mandado).

De outra parte, a inviolabilidade de domicílio, está prevista no art. 5º, XII, da CRFB/88: “Art. 5º, (...) XI - a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial;”.

O texto constitucional traz, então, a garantia (individual) de que ninguém terá seu domicílio violado. Por ser o referido dispositivo regra que trata de direitos fundamentais, o seu próprio texto contempla as exceções que acabam por relativizar referido direito. Assim, é possível se violar licitamente o domicílio nas seguintes hipóteses:

 

  1. Durante a noite:

              a): Com o consentimento do titular do direito;

              b) Em caso de flagrante delito;

              c) Em caso de desastre, e

              d) Para prestar socorro.

  1. Durante o dia:

              a) Em todos os casos acima mencionados;

              b) Por determinação judicial.

 

Inicialmente, importa anotar que ambas as regras mencionadas, tanto aquela prevista no inciso LXI do art. 5º da CRFB/88 quanto a que encontra previsão no inciso XI se manifestam na forma de regras constitucionais.

De acordo com os autores que trabalham a hermenêutica constitucional, exige-se que seja feito exatamente aquilo que as regras contemplam, pois elas têm uma determinação de extensão de seu conteúdo no âmbito das possibilidades jurídicas e fáticas. Conforme Alexy[1], “essa determinação pode falhar diante de impossibilidades jurídicas e fáticas; mas, se isso não ocorrer, então, vale definitivamente aquilo que a regra prescreve”. Em miúdos, as regras possuem um mesmo caráter definitivo e não admitem qualquer ponderação (diferente, portanto, dos princípios).

Para Dworkin[2], “as regras são aplicáveis à maneira do tudo-ou-nada: ou a regra é válida, e nesse caso a resposta que ela fornece deve ser aceita, ou não é válida, e nesta hipótese em nada contribui para a decisão”. Então, as regras constitucionais possuem a subsunção como modo de aplicação: ou ela vale ou ela não vale. No primeiro caso, deve ser aplicada exatamente como está prevista; no segundo, deve ser necessariamente excluída para toda e qualquer apreciação para fatos futuros.

Não há dúvidas que ambos os incisos aqui analisados (XI e LXI, do art. 5º, da CRFB/88) se encontram em plena vigência. Igualmente, a aplicação de qualquer deles não afasta a incidência do outro, sobretudo, porque procura cada qual, garantir direitos que protegem bens jurídicos distintos: um a liberdade de locomoção; o outro, a inviolabilidade de domicílio.

A questão pode soar redundante e até ridícula, mas quando se diz que “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei” (CRFB/88, art. 5º, XLI), é exatamente isso que se quer dizer. Não se admite, então, por exemplo, prisão para averiguação.

De igual modo, quando se lê que “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial” (CRFB/88, art. 5º, XI), as únicas exceções admissíveis legalmente para violação de domicílio são aquelas contidas na própria norma.

Anotado isso, voltamos à dúvida que impulsionou a discussão: é lícita a incursão em domicílio (sem que esteja presente qualquer exceção constitucional) para dar cumprimento de mandado de prisão?[3]

Entendemos que não. E as razões são simples: não há qualquer margem de interpretação constitucional para se admitir que um mandado de prisão possa afastar a incidência da regra contida no art. 5º, XI, da CRFB/88. Como se verificou, não há ponderação possível em caso de regra constitucional que trata de direitos fundamentais.

Aliás, a própria norma infraconstitucional (CPP, art. 283, § 2º, objeto de reforma promovida em 2011 pela Lei 12.403) traz que “a prisão poderá ser efetuada em qualquer dia e a qualquer hora, respeitadas as restrições relativas à inviolabilidade do domicílio”.

Alguns autores sustentam a possibilidade[4], invocando, sobretudo, o art. 293 do Código de Processo Penal:

Art. 293.  Se o executor do mandado verificar, com segurança, que o réu entrou ou se encontra em alguma casa, o morador será intimado a entregá-lo, à vista da ordem de prisão. Se não for obedecido imediatamente, o executor convocará duas testemunhas e, sendo dia, entrará à força na casa, arrombando as portas, se preciso; sendo noite, o executor, depois da intimação ao morador, se não for atendido, fará guardar todas as saídas, tornando a casa incomunicável, e, logo que amanheça, arrombará as portas e efetuará a prisão.

Parágrafo único.  O morador que se recusar a entregar o réu oculto em sua casa será levado à presença da autoridade, para que se proceda contra ele como for de direito.

 

Grave erro. Veja-se aqui que o texto constitucional (CRFB/88, art. 5º, XI), diz uma coisa; a norma infraconstitucional (art. 293, do Código de Processo Penal – da redação original de 1941), em conflito com a primeira, diz outra. Não se precisa aqui, de um raciocínio hermenêutico profundo para se concluir qual dos dispositivos prevalece. Ainda assim, vale discorrer sobre o tema.

Guastini[5], por exemplo, anota que a explanação interpretativa pode se dar no campo abstrato (com a simples leitura do texto) e no campo concreto (por ocasião de uma controvérsia específica). Conforme o autor, pode ocorrer de uma primeira interpretação (N1) contradiga a norma constitucional; uma segunda (N2), por outro lado, esteja em plena conformidade com a Constituição. Evidentemente que, neste caso, qualquer intérprete deve eleger a posição que encontra consonância com o texto constitucional. A interpretação conforme a Constituição é aquela que se adéqua, se harmoniza a norma constitucional, elegendo-se, frente a duas possibilidades interpretativas, o significado que evite qualquer contradição entre a norma (seja ela qual for) e o conteúdo constitucional.

Então, é de se concluir que o art. 293, caput¸ e parágrafo único do Código de Processo Penal deve ser afastado para todos os efeitos.

Um argumento de reforço: caso o leitor não esteja plenamente convencido da não recepção do art. 293 do Código de Processo Penal, leve-se em conta que ao longo dos séculos de interpretação das leis, a jurisprudência elaborou algumas regras de aceitação generalizada para resolver as antinomias, pelo menos aquelas aparentes. O fruto desse trabalho jurisprudencial, a que não faltou suporte doutrinário, são os chamados critérios cronológico, hierárquico e da especialidade que são, em verdade, simples regras técnicas de solução de conflitos entre normas. [6]

Novamente, o art. 293 não suportaria ao filtro do critério cronológico, pois, como se sabe, é produtor da redação original do Código de Processo Penal (1941); a Constituição, por outro lado, foi promulgada em 1988. Por isso, a partir da entrada em vigor da nova constituinte, o art. 293 do Código de Processo Penal deve ser completamente ignorado (como se não existisse, não estivesse lá). É que a interpretação judicial da lei é sempre um juízo sobre a própria lei, reativamente à qual o juiz tem o dever e a responsabilidade de escolher somente os significados válidos, ou seja, os significados que são compatíveis com as normas substanciais e com os direitos fundamentais por ela estabelecidos. Quando essa contradição é insanável, como no caso em apreço, é dever do juiz (ou Tribunal) declará-la inconstitucional. [7]

O Mandado de Prisão, portanto, não é medida autorizativa para se violar domicílio. Conforme o velho axioma da lógica popular, “uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa”. Os institutos não se confundem. Não se vê dentre as exceções previstas no art. 5º, XI, do texto constitucional a hipótese “em caso de pesar Mandado de Prisão contra o habitante”.

No plano doutrinário, vale a leitura da obra de Fernando da Costa Tourinho Filho. Conforme o autor[8], o cumprimento do mandado de prisão em domicílio somente é possível caso o morador autorize o ingresso naquele ambiente. assim, “se o mandado de prisão não vier acompanhado de uma autorização para entrada no domicílio e autorização judicial, os executores nada poderão fazer. Restará apenas, cercar a casa e providenciar a autorização judicial”. [9]

Cremos que interpretação diversa não é possível. Não se pode afastar a incidência da norma constitucional fazendo referência à norma infraconstitucional inconstitucional ou pior, norma não recepcionada constitucionalmente. Trata-se a inviolabilidade de domicílio de Direito Fundamental e que, portanto, deve ser levada a sério. Considerar legítima a incursão em domicílio (qualquer domicílio) sem que se tenha autorização judicial específica ao endereço onde se deve cumprir a medida é conferir “cheque em branco” em poder da agência de repressão a quem compete cumprir a ordem de prisão. E neste caso, confundem-se os institutos, viola-se a Constituição e ressuscita-se o art. 293 do Código de Processo Penal que há muito já foi (ou, ao menos, deveria ter sido) sepultado.

 

Airto Chaves Junior é doutorando em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI) com Dupla Titulação pela Universidade de Alicante (UA), Espanha. É advogado criminalista; Professor titular do Curso de Graduação em Direito da Univali; Professor de Direito Penal da Escola do Ministério Público do Estado de Santa Catarina (EMPSC); Professor de Direito Penal da Escola da Magistratura do Estado de Santa Catarina (ESMESC). Coautor do livro Para que(m) serve o Direito Penal? Uma análise criminológica da seletividade dos segmentos de controle social, publicado pela Lumen Juris. Email: oduno@hotmail.com.

Priscila Portella Coutinho é advogada em Santa Catarina. Email: ph_pri@hotmail.com.

 

[1] ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução de Vergílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 104.

[2] DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. Tradução de Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 39.

[3] Veja-se que não se está tratando aqui de prisão em flagrante, contida nas exceções do art. 5º, XI, da CRFB/88, mas de prisão decorrente de Mandado.

[4] Guilherme de Souza Nucci, neste caso, sustenta que “(...) não há necessidade de autorização judicial específica para o arrombamento das portas e ingresso forçado no ambiente, que guarda o procurado, pois o mandado de prisão e a própria lei dão legitimidade a tal atitude” (In: NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. 10. ed. rev. atual e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais: 2013, p. 594).

[5] GUASTINI, Ricardo. La “constitucionalización” del ordenamiento jurídico: el caso italiano. In: CARBONELL, Miguel (ed.). Neoconstitucionalismo (s).  2. ed. Madrid: Trotta, 2005, p. 56-57.

[6] MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Hermenêutica Constitucional e Direitos Fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2000, p. 45-46.

[7] STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999, p. 219.

[8] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal, vol. 3. 34. ed., rev. e de acordo com a Lei n. 12.403/2011. São Paulo: Saraiva, 2012, p 467.

[9] Na mesma linha de abordagem, apontam Távora e Alencar: “o mandado de prisão deve se fazer acompanhar por autorização judicial para o ingresso domiciliar. Não bastaria a mera ordem prisional para que o domicílio pudesse ser invadido. É essencial que a autoridade judicial especifique em que residência a diligência será realizada, cumprindo a exigência do art. 243, inciso I do CPP” (In: TÁVORA Nestor; ALENCAR, Rosmar Antonni Rodrigues C. de. Curso de Direito Processual Penal. 7. ed. rev. ampl e atual. São Paulo: JusPODIVM, 2012.

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Sobre o autor


Airto Chaves Junior

Doutor e Mestre em Ciência Jurídica pelo Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciência Jurídica da UNIVALI, Área de Concentração denominada Constitucionalismo, Transnacionalidade e Produção do Direito. Doutor em Direito pela Universidade de Alicante, na Espanha. Professor permanente do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciência Jurídica da Universidade do Vale do Itajaí nas linhas de pesquisa:

MESTRADO: a) Direito e Jurisdição; b) Direito Ambiental, Transnacionalidade e Sustentabilidade;

DOUTORADO: Principiologia Constitucional e Política do Direito. Professor titular de Direito Penal do Curso de Graduação em Direito da Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI). 

Professor de Direito Penal da Escola do Ministério Público do Estado de Santa Catarina (EMPSC). Professor de Direito Penal da Escola da Magistratura do Estado de Santa Catarina (ESMESC). Professor de Direito Penal da Escola da Magistratura Federal do Estado de Santa Catarina (ESMAFESC). Professor de Direito Penal da Escola da Magistratura do Trabalho de Santa Catarina (AMATRA 12).

Avaliador/parecerista de artigos submetidos para publicação nos seguintes periódicos: Revista da Facultad de Derecho y Ciencias Políticas de la Universidad Pontificia Bolivariana, sede Medellín (ISSN 0120-3886); Revista Direito GV, da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (ISSN: 1808-2432); Revista de Direito Administrativo RDA, da FGV DIREITO RIO - Escola de Direito do Rio de Janeiro (ISSN 0034-8007: e-ISSN 2238-5177); Revista Direito e Política (ISSN 1980-7791), do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu da UNIVALI. Consultor ad-hoc no Processo de Análise e Julgamento de Mérito e Viabilidade Técnico-Científica de Projetos de Pesquisa do Fundo Mackenzie de Pesquisa MACKPESQUISA, da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Menção Honrosa no Prêmio CAPES de teses 2018 na área Direito. Autor dos livros: Além das Grades: a paralaxe da violência nas prisões brasileiras, publicado pela Tirant lo Blanch (2018) e Para que(m) serve o Direito Penal? Uma análise criminológica da seletividade dos segmentos de controle social, publicado pela Lumen Juris (2014). Tem experiência em Direito, com ênfase em Direito Penal e Criminologia. 

ORCID iD: https://orcid.org/0000-0003-3016-5618

Endereço para acessar este CV: http://lattes.cnpq.br/7312645313945191

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