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Artigo: A desconformidade constitucional do chamado “acordo de não-persecução penal” e o efeito bumerangue
O artigo desta semana do professor Henrique da Rosa Ziesemer no "Meu Site Jurídico" trata do “acordo de não-persecução penal”, que estabelece premissas para soluções negociais (“nolo contendere”) no Processo Penal como alternativas para o processamento e o julgamento dos casos mais graves. Confira:
A desconformidade constitucional do chamado “acordo de não-persecução penal” e o efeito bumerangue
É possível criar-se um novo modelo de processo penal por meio de mera resolução?
O Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) entende que sim.
No último dia 08 de setembro de 2017, por meio da Resolução nº 181, introduziu (ou pretende fazê-lo) no âmbito do cenário processual penal brasileiro o chamado “ACORDO DE NÃO-PERSECUÇÃO PENAL”. Por meio deste “acordo” estabeleceu premissas para soluções negociais (“nolo contendere”) no Processo Penal como alternativas para o processamento e o julgamento dos casos mais graves, notadamente nos delitos cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa. Para isso contemplou o Ministério Público com o amplo poder discricionário de deixar de propor a denúncia, firmando uma espécie de negócio processual penal com o investigado de não mover o processo desde que este confesse formal e detalhadamente a prática do delito, indicando eventuais provas de seu cometimento, e impondo, de pronto, ao investigado, sanções de natureza penal (nota) que deverão ser por ele rigorosamente cumpridas. Interessante ainda (e surpreendente) é que o “acordo de não-persecução penal” poderá ser celebrado por ocasião da audiência de custódia. Descumpridas quaisquer das condições estipuladas no acordo ou não comprovando o investigado o seu cumprimento, no prazo e condições estabelecidas, o Ministério Público deverá, se for o caso, oferecer, imediatamente, a denúncia.
Os seguidores deste novo modelo justificam a necessidade de sua implementação sob o argumento de possibilitar a racionalização e efetividade da intervenção processual, motivada pela necessidade de se neutralizar os custos econômicos e sociais envolvidos na persecução dos delitos de pequeno ou médio potencial ofensivo.
Contudo, a partir de uma análise crítica e mais acurada do conteúdo da Resolução sob o foco, percebe-se que este ato administrativo não promove uma mera alteração ou inovação de procedimento ou de ampliação de modelos negociais vigentes no ordenamento brasileiro (transação penal, colaboração premiada, etc), mas da criação de um novo modelo de processo penal, porém sem base legislativa.
Em que pese a boa intenção do Conselho Nacional do Ministério Público, este esbarra em uma série de empecilhos que o impedem de editar tal resolução, por absoluta falta de competência para tanto, assim como em outros obstáculos de ordem constitucional. Ainda, o mérito do acordo padece de brechas que fragilizam sua eficácia e, por consequência, a atuação do Ministério Público.
Vejamos:
1 – Antes de adentrar na temática constitucional, padece a referida inovação de suporte jurídico sociológico, o que fulmina a raiz do novel instituto. O direito de punir pertence ao Estado e não ao Ministério Público, ou ao CNMP. Assim, só e somente o Estado brasileiro pode dizer, por meio de sua expressão democrática, materializada no Parlamento, em quais casos o Ministério Público pode, ou não, abrir mão da ação penal, sua primeira função institucional (Art. 129, I da Constituição). Não cabe à criatura, no caso, o Ministério Público, retirar de seu criador, o Estado, a prerrogativa de politicamente decidir os rumos do direito penal. Pode o Ministério Público lidar e interpretar o direito penal posto pelo Estado, mas não inovar criando figuras processuais e penais que não existem;
2 – Nos termos do Art. 130-A, §2º, da Constituição da República: “Compete ao Conselho Nacional do Ministério Público o controle da atuação administrativa e financeira do Ministério Público e do cumprimento dos deveres funcionais de seus membros, cabendo-lhe:(…)”. O dispositivo constitucional em apreço não contempla ao CNMP a possibilidade de criar figuras de atuação processual, ou mesmo interferir em atividade fim. Toda a atuação processual do membro do Ministério Público é finalística, ainda mais quando esta visa avaliar a aplicação ou não do direito e do processo penal. Assim, além de não ter competência constitucional para editar este tipo de regra, também não pode o CNMP disciplinar atividade fim do Ministério Público, interferindo em seu mérito. Aliás, este tema já foi alvo do Enunciado nº 6 de 2009 do CNMP:” Os atos relativos à atividade-fim do Ministério Público são insuscetíveis de revisão ou desconstituição pelo Conselho Nacional do Ministério Público”.
3 – As normas editadas pela resolução possuem evidente caráter processual penal. Mais que isso, interferem de forma direta no processo penal brasileiro, criando obrigações a terceiros, avaliação de figuras penais, pagamento de prestação pecuniária, citando inclusive, “nos termos do Art. 45 do Código Penal”, analogia à pena mínima (Art. 18, IV da Resolução 181), em nítida forma processual de atuação, criando um modelo distinto (da lei e da Constituição) de abstenção da ação penal, o que também é processual. Assim, o CNMP se transformou em legislador de fato, ao criar figuras processuais típicas de legislador em atuação finalística do Ministério Público, em clara ofensa do Art. 22, I, da Constituição: “Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: I – direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho.
4 – Interfere também a Resolução no princípio da legalidade, pois só a lei pode mitigar o direito de punir, como se depreende, por exemplo, das Leis 9.099/95 e 12.850/2013; ofende também o axioma esculpido no Art. 5º, II, da Constituição da República (“ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”), pois o acordo de não persecução penal cria, sem lei para tanto, obrigações para terceiros, dentre os quais, as que mais chamam a atenção, as do inciso IV, prestar serviço à comunidade sem permissivo legal, e do inciso II, do Art. 18: “renunciar voluntariamente a bens e direitos, de modo a gerar resultados práticos equivalentes aos efeitos genéricos da condenação, nos termos e condições estabelecidos pelos arts. 91 e 92 do Código Penal”. É de se ponderar que não existe possibilidade de renúncia voluntária a bens e direitos, quando a consequência da não voluntariedade é a de ser processado penalmente e poder ser condenado à pena de prisão. Enquanto ninguém pode ser privado de sua liberdade ou seus bens sem o devido processo legal (Art. 5º LIV), o dispositivo em apreço, em afronta à legislação vigente, inverte a lógica constitucional. Frisa-se, entretanto, que outros dispositivos semelhantes, como os da Lei 9.099/95, são resultado do processo legislativo, tendo eficácia erga omnes, o que não se admite em sede de resolução, que é ato administrativo que somente pode se dirigir ao Ministério Público, mas nunca alcançar terceiros;
5 – Ainda, a Resolução 181/2017, ofende direitos e garantias fundamentais previstas no Art. 5º da Constituição da República: “LIX – será admitida ação privada nos crimes de ação pública, se esta não for intentada no prazo legal”. Imagine-se um investigado que, sem previsão legal, firma um acordo de não persecução penal. A vítima, insatisfeita, ingressa com queixa-crime subsidiária, pois discorda do acordo, alegando que tal acordo não possui previsão legal e não pode lhe retirar direitos fundamentais. Diante disso, indaga-se: pode uma mera resolução mitigar um direito fundamental da vítima? Pode-se argumentar que o Ministério Público não foi omisso ou inerte, mas sua ação não encontra previsão na lei, sendo que só esta poderia interferir no direito da vítima. Somente a lei formalmente aprovada pode regular direitos e garantias fundamentais, como as previstas no Art. 5º da Constituição, mas nunca uma resolução. Admitir-se que uma norma meramente administrativa avance neste campo é enfraquecer a democracia e retirar, primeiramente do povo (detentor do poder) em segundo lugar, do parlamento, a prerrogativa constitucional de editar regras sobre processo penal e também da atuação do Ministério Público, que é órgão do Estado e não supra estatal. Bastaria que o CNMP formulasse tantas resoluções quanto desejasse, sem haver discussão parlamentar ou mesmo com outras instituições, adentrando no campo do processo penal, o que em um Estado Democrático de Direito não pode ser admitido.
6 – Ofende também a Resolução 181, o disposto no Art. 5º, XXXV, da Constituição da República: “XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;” pois não é previsto nenhum tipo de homologação judicial, ou mesmo controle sobre os atos do Ministério Público, em agressão ao sistema de freios e contrapesos;
7 – No mérito, o acordo deixa de prever rigorosos critérios para a aplicação do instituto. Questiona-se: Nos termos do §1º da Resolução, somente crimes de dano mensuráveis em salários mínimos são passíveis do acordo? Fica à avaliação do Membro do Ministério Público a aplicação de causas de diminuição de pena, para se estabelecer o tipo penal base para a propositura do acordo? Deve-se prever a suposta pena, para fins de controle da prescrição, ou lida-se com a pena cominada? Caso um investigado descumpra um acordo e seja denunciado, pode ser beneficiado com um novo acordo de não persecução penal (o Art. 76, §2º da Lei 9.099 não fala em processo em andamento)? Há algum cadastro nacional de acordos de não persecução penal? Em casos de crimes conexos, como proceder? A figura do tráfico privilegiado admite o acordo de não persecução penal? Caso seja submetido ao Juiz, e se este não concordar? Estas são algumas das preocupações sobre esta inovação processual penal.
É de se observar que as respostas a todas as perguntas acima, ainda que forma técnica e fundamentada, ampliam a interferência de uma Resolução meramente administrativa em um objeto a ser tratado por lei, fazendo mais ainda que um ato administrativo se sobreponha ao Estado Democrático de Direito. Quando mais se buscam respostas dentro de uma Resolução, mais se enfraquece a lei.
Assim, na condição de observadores críticos deste cenário e fundados na convicção de que as normas processuais penais devem reverência aos princípios que orientam um sistema acusatório de processo, a introdução de mecanismos de abreviação do procedimento ou de “nolo contendere”, com a imposição de medidas de coerção, somente podem ser efetivadas por meio de lei que altere o Código de Processo Penal.
Dito de outro modo, não incumbe ao CNMP, por suas competências constitucionais, ampliar o espaço de consenso no processo penal, elevando a atividade negocial a um patamar que não previsto no Código de Processo Penal. Um “acordo de não-persecução penal” ao arrepio de previsão legal viola os primados básicos do devido processo legal, ao tempo em que atenta contra os princípios da legalidade, da ampla defesa, do contraditório, da presunção de inocência e o da reserva de jurisdição.
Juridicamente preocupante, portanto, o fato de o CNMP, sem legitimidade legislativa (em sentido formal), tratar de matéria de Direito Processual Penal e de alteração do Código de Processo Penal, por meio de mera resolução de natureza administrativa. As críticas apresentadas no decorrer deste texto são fundadas na impessoalidade, respeito e na técnica jurídica, objetivando apenas o enriquecimento do debate.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
[1] SILVA, Danni Sales. Acordo de não-persecução penal: Inconformidade jurídico constitucional da Resolução nº 181/2017 do Conselho Nacional do Ministério Público. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5192, 18 set. 2017. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/60570>. Acesso em: 28 set. 2017.
[2] CALABRICH, Bruno; FISCHER, Douglas; PELELLA, Eduardo (Org.). Garantismo penal integral: questões penais e processuais, criminalidade moderna e a aplicação do modelo garantista no Brasil. Salvador: Editora JusPodivm, 2010.
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Sobre o autor
Henrique da Rosa Ziesemer
Possui graduação em Direito e mestrado em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí (Univali). Especialista em Direito Processual Penal pela Univali (2008), e Direito Administrativo pela Cesusc (2004). Atualmente é doutorando em Ciência Jurídica. Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de Santa Catarina desde 2004, e professor da Escola do Ministério Público de Santa Catarina e da Magistratura.
Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Penal e Processual Penal. Coordenou, de 2013 a 2015, a campanha "O que você tem a ver com a corrupção?". Membro da comissão da CONAMP de reforma e elaboração do novo Código de Processo Penal.
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/6913389978064557
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